A gravidez na adolescência é a principal razão que leva meninas a se casarem antes dos 18 anos em três cidades na Bahia. Entre elas estão Salvador, Camaçari e Mata de São João. O desejo de se casar, a perda da virgindade e a necessidade de sair de um lar conflituoso são os motivos que aparecem em seguida. A informação é do levantamento da organização Plan International, intitulado “Tirando o Véu”.
A pesquisa foi realizada entre novembro de 2017 e abril de 2018. Além da Bahia, o estudo também colheu dados no município de Codó, localizado no Maranhão.
O estudo, qualitativo, entrevistou 217 pessoas, sendo 13 adolescentes casadas, 19 mulheres que se casaram quando eram menores de idade e 12 homens que se casaram com meninas. A pesquisa também ouviu famílias, líderes comunitários, agentes públicos e adolescentes que não se casaram.
A Bahia e o Maranhão estão em quinto e décimo lugares, respectivamente, no ranking de casamentos ou uniões de meninas adolescentes registrados pelo IBGE em 2015. A atuação da ONG nesses estados facilitou a aproximação com as meninas e a realização da pesquisa.
De acordo com um estudo do Banco Mundial de 2017, o Brasil tem o maior número de casos de casamento infantil da América Latina e o quarto no mundo. O problema afeta principalmente as meninas, que, de forma geral, se casam com parceiros mais velhos. Segundo dados do IBGE de 2016, foram 28.379 uniões de meninos de até 19 anos, contra 109.594 de meninas.
A pesquisa da Plan busca entender os motivos e os desdobramentos de uniões precoces no país, informais e no papel, explica Viviana Santiago, gerente de gênero da organização. É a primeira vez que realizam o levantamento.
“Não temos no Brasil muitos estudos sobre casamento infantil”, diz ela. “Por isso é difícil elaborar políticas públicas sobre o assunto.”
Para Gabriela Mora, oficial do programa de adolescentes do Unicef no Brasil, a pesquisa é importante para chamar atenção para um tema invisível no país. “Ainda que seja um levantamento regional, mostra normas sociais presentes na sociedade brasileira como um todo, que permitem que o casamento infantil seja tolerado”, diz.
No levantamento, entre os 44 casos de uniões durante a adolescência estudados, em 15 a motivação foi a gravidez precoce. Segundo Mora, o estudo tem o mérito de mostrar que o casamento infantil e a gravidez na adolescência são fenômenos vinculados.
“Houve uma redução nos casos de gravidez precoce de 2006 a 2016, mas não é significativa quando comparada à queda da taxa de natalidade da população como um todo. E há desigualdades regionais profundas. Isso é preocupante”, diz Mora.
Santiago lembra que a gestação é tanto causa como consequência direta do casamento infantil. “Muitas vezes, a maternidade é uma forma de manter a menina em casa, deixá-la presa à dinâmica familiar”, diz.
Depois da gestação, o desejo de se casar aparece como a segunda motivação. Essa é uma das particularidades do Brasil e da América Latina, segundo Santiago: o fato de as uniões serem consentidas. Em outros países, é comum que a menina seja prometida para um homem em troca de dinheiro ou por questões culturais.
Santiago, entretanto, diz que é preciso relativizar esse consentimento, porque muitas vezes a menina opta pelo matrimônio por não ter outro projeto de vida. Isso também costuma ocorrer se a jovem vive em um lar violento ou é muito controlada pela família.
“Acham que o casamento é uma fuga. A esperança de uma vida melhor”, diz ela. Na pesquisa, a saída de um lar conflituoso aparece como a terceira motivação mais comum, junto com a perda da virgindade.
“Em alguns casos, a família descobre que a menina já teve relações sexuais e diz que ela precisa casar para não ‘viver em pecado’. E algumas meninas casam justamente para poder perder a virgindade, porque a sexualidade delas é controlada pela família”, afirma Santiago.
CONSEQUÊNCIAS
Entre as consequências das uniões antes dos 18 anos mencionadas na pesquisa, o abandono escolar é uma das principais. Das 13 meninas entrevistadas, seis largaram os estudos.
Uma delas foi Juliana (nome fictício), 15, moradora de Codó, cidade de pouco mais de 120 mil habitantes no Maranhão, que decidiu se unir ao namorado, quatro anos mais velho, no fim de 2017.
“Larguei os estudos por causa da minha meninazinha. Mas vou voltar no próximo ano”, diz ela, que cursava o ensino fundamental. A filha tem hoje 9 meses.
A adolescente já estava grávida quando se casou, mas diz que isso não motivou a decisão. Segundo ela, a união, não formalizada em cartório, foi uma vontade dos dois, que só se viam aos fins de semana.
Ela conheceu o companheiro em uma festa realizada todo ano na cidade. Trocaram telefones, começaram a conversar por meio de um aplicativo de celular e, em poucos meses, já estavam namorando. Foi o seu primeiro relacionamento sério.
Mais alguns meses de namoro e o rapaz a chamou para morar com ele. “E eu disse que queria”, conta. “Falei com minha mãe e meu pai e eles falaram que, se eu quisesse ir, podia.”
Juliana não se arrepende da escolha. Conta que a vida mudou pouco desde então, especialmente agora que voltou a morar na casa dos pais, que trabalham como lavradores –o companheiro conseguiu um emprego como ajudante de obras e está há um mês morando em outro estado.
A rotina da jovem consiste em ajudar a mãe nas tarefas de casa, cuidar da bebê, cozinhar as refeições e ir à igreja católica que frequenta. Sonha em terminar os estudos e viajar para fora do Maranhão. “Quero conhecer um lugar mais longe, que nunca fui, tipo São Paulo”, conta.
Outros desdobramentos do casamento infantil são aumento do serviço doméstico, exclusão do mercado de trabalho e restrição da liberdade, segundo o estudo. Em alguns casos, o matrimônio resulta em violência, psicológica e física contra a mulher, ponto mais mencionado por agentes públicos e lideranças locais do que por meninas nas entrevistas, já que se trata de um assunto sensível.
Há aquelas que se casaram mais cedo do que Juliana. Na pesquisa, dos 44 casos de uniões durante a adolescência, 16 ocorreram com meninas de idades entre 10 e 14 anos, o que por lei é considerado estupro de vulnerável. A pena para o crime, instituído em 2009, é de reclusão de 8 a 15 anos.
Em março, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) sancionou uma lei que proíbe o casamento de pessoas de menos de 16 anos em qualquer circunstância. Antes, isso era possível em casos de gravidez e para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal.
A expectativa é de que a pesquisa seja parte de um levantamento maior sobre a América Latina, que deve incluir também Bolívia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Peru e República Dominicana.
por Júlia Zaremba e Marina Estarque | Folhapress