Foto: Site Deficiente Ciente
Juliana Rocha*
Jamir Kinoshita**
Considera-se que o lugar de fala legítima quem profere um discurso. O pressuposto é válido quando a discussão se espraia para o campo jurídico e a forma como as normas regulam a vida em sociedade.
Cumpre lembrar que as leis são elaboradas para adequar uma necessidade a um fato social. Trata-se de uma regulamentação que possibilita a convivência entre as pessoas, respeitando-se a pluralidade e a diversidade.
Essas questões são importantes ao se analisar a Lei 8.123/1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e determina a contratação de trabalhadores que são pessoas com deficiência – cuja sigla é PcD, e não PCD nem PCDs.
Conhecida como Lei de Cotas, estabelece que as organizações com 100 empregados ou mais, ou seja, médias e grandes empresas, com faturamento anual a partir de R$ 4,8 milhões, reservem de 2% a 5% de suas vagas a esse público.
Sancionada em 1991 e regulamentada em 1999, ela só começou a ser fiscalizada em 2008. Convém destacar que o Brasil é signatário da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada como emenda constitucional em 2007.
Portanto, é um preceito da Constituição Federal a ser cumprido.
Nesse ponto é que se reforça a função social do Direito que, além de regulamentar as relações sociais, deve promover o bem comum ao garantir o respeito aos direitos individuais.
A premissa é relevante mediante o discurso de doutrinadores, alguns de renome, que defendem a flexibilização da Lei de Cotas, numa visão que preza exclusivamente as organizações em detrimento das PcD. É um lugar de fala unilateral, que restringe os demais agentes envolvidos para um bem comum, que é a necessidade de se aperfeiçoar o regramento sobre o tema.
O termo “flexibilização” é dúbio e perverso aos direitos sociais. Uma busca ao dicionário indica seu significado: abrandamento ou eliminação de leis ou normas. E a noção é aplicada como justificativa para as empresas descumprirem a lei.
A Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) revela que é alto o déficit de vagas preenchidas por PcD. Na administração pública, o percentual é de 88,39%; nas empresas públicas e de economia mista, 45,91%; e nas organizações privadas, 49,35%.
Segundo o eSocial, que traz informações de trabalhadores registrados pelos empregadores, há diferença salarial entre pessoas sem deficiência e PcD. Enquanto o primeiro grupo tem remuneração média de R$ 1.904,49, o segundo recebe R$ 1.637,50. Há ainda desigualdade de gênero: uma mulher sem deficiência ganha R$ 1.791,42 e a que é PcD, R$ 1.411,77.
Os dados demonstram como a inclusão social de PcD está longe de ser algo minimamente aceitável. E muito menos aceitável são as falsas argumentações por parte de doutrinadores, que no caso não são merecedores da alcunha, para explicar o não cumprimento da Lei de Cotas.
Uma justificativa comum é a complexidade de certas atividades serem desempenhadas por PcD, remetendo-se ao trabalho em aeronaves, de vigilância e em embarcações. Ora, a deficiência, por si só, já restringe a PcD à execução de determinados ofícios. Assim, não se espera que alguém com deficiência visual atue como comandante de aeronave.
Outra falácia, com base em análise equivocada da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), diz que a cota não é cumprida pela baixa qualificação das PcD: cerca de 50% com 25 anos ou mais não concluíram a educação básica e o índice de analfabetismo é de 19,5% nesse grupo, ante 4,1% da população sem deficiência.
Os números só comprovam que as PcD estão excluídas do sistema educacional por uma série de fatores – para ficar em um deles, tem-se a dificuldade de locomoção. Portanto, a situação não se deve a uma mera escolha das PcD não quererem estudar.
Há ainda aqueles que questionam normas mais recentes, como a Lei 14.133/2021, que prevê as diretrizes para licitação e contratação por parte de administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais. Ao estabelecer que os licitantes devem provar que cumprem a cota de PcD, está se seguindo um regramento constitucional. Logo, não faz sentido as empresas que querem participar de tais licitações criticarem esse requisito, que é apenas um entre os demais que compõem a lei.
Para tornar o debate assertivo, destacamos duas pesquisas de doutorado. A primeira, defendida junto à Universidade Autônoma de Lisboa, tem como autor o ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, do Tribunal Superior do Trabalho. O estudo analisou os impactos da reforma trabalhista no sistema de cotas de emprego no Brasil e em Portugal, a partir de uma ampla investigação da doutrina, das legislações e das jurisprudências. No contexto brasileiro, mostrou-se de como a Lei de Cotas é descumprida pelas organizações.
A outra, realizada na USP, apontou que a inclusão social de PcD no mundo do trabalho é carregada de preconceitos e discriminação: as vagas destinadas são aquelas que têm menores qualificação e remuneração. Não há política de carreira para as PcD, o que significa que o seu lugar se restringe à porta de entrada das empresas, sem possibilidade de ascensão profissional.
Para um convívio social que se queira justo, inclusivo e diversificado, há muitas barreiras a serem enfrentadas. Para as PcD, é imprescindível que poder público, empresas e sociedade civil busquem aperfeiçoar as normas sobre a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho. O discurso da flexibilização só serve para quem defende o retrocesso e a incivilidade, algo que não condiz aos padrões de ESG tão buscados pelas corporações.
* Juliana Rocha (vianaadvogados@outlook.com) é advogada atuante na área de diversidade
* Jamir Kinoshita (jamir.kinoshita@alumni.usp.br) é PcD motora, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e pesquisador do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-USP) especializado em diversidade e inclusão social
“Este texto não reflete a opinião”.
Fonte: Hoje em Dia